domingo, 2 de novembro de 2008

Grande "Garoupa"

Tirei esta entrevista do jornal Expresso das Nove a um grande "lobo do mar" e amigo Garoupa. Quando voltares cá á Terceira não te esqueças de avisar para vires comer mais uma feijoada lá a casa. Abraços para ti e para o Sabão!

O navegador sem medo

Fez várias travessias marítimas sozinho, a bordo de um caiaque ou de um catamaram. Como é que surgiu o gosto pelo mar e esse espírito de aventura?
Surgiu muito cedo, na minha infância. Nasci no seio de uma família ligada ao mar. O meu pai e o meu avô estavam ligados ao mar. Também contribuiu o facto de ter nascido em Vila Franca do Campo, uma localidade construída para o mar. Se repararmos nas fachadas das casas vemos que estão voltadas para o mar, o que não acontece em outras vilas ou mesmo na cidade de Ponta Delgada, onde vemos os quintais virados para o mar, em especial em S. Roque. Quem está a navegar ao longo da costa de S. Roque nota que todos os quintais estão virados para o mar. Em Vila Franca do Campo isso não acontece. Isso para explicar que o facto de ter nascido em Vila Franca do Campo foi muito importante…

Que idade tinha quando entrou num barco pela primeira vez?
Tinha cerca de 6 anos quando comecei a navegar em caiaques. Na altura fiz um pequeno caixote - a que chamavam gaveta, porque era parecido com uma - e ia para o ilhéu de Vila Franca no Campo…

Num barco feito por si?
Num caixotinho, a que as pessoas chamavam de gaveta. Ia para o ilhéu, umas vezes sozinho, outras acompanhado.

A partir daí não parou?
Chegava ao ilhéu, subia as rochas e via Santa Maria ao longe. E pensava: "um dia quero chegar a Santa Maria". Sempre com um espírito aventureiro. Anos mais tarde, cheguei a Santa Maria de caiaque, um tipo de canoa com duas proas e cerca de 20 quilos.

Que idade tinha quando foi a primeira vez a Santa Maria?
Tinha 28 anos quando fui a primeira vez de caiaque para Santa Maria.

É um percurso longo, principalmente para quem vai de caiaque. Como é que foi a viagem?
Fui treinando, durante muitos anos, ao longo da costa de S. Miguel. Saía do Clube Naval de Ponta Delgada e ia remando ao longo da costa para conhecer a resistência que tinha e avaliar a minha reacção. São cerca de 45 milhas náuticas (70 quilómetros) até Santa Maria, pelo que tive de treinar e analisar o meu comportamento.

Quanto tempo demorou a chegar a Santa Maria?
Da primeira vez demorei 14 horas. Mas fiz mais duas travessias e na melhor levei nove horas, com vento e ondulação favoráveis. Consegui por a canoa a planar…

Foi acompanhado por alguém?
Fui sempre sem assistência para Santa Maria. Com assistência é outro espírito. É mais um feito desportivo. No meu caso é um feito desportivo e de marinharia. Temos de saber interpretar as correntes para conseguir manter o rumo.

Sentiu medo quando estava a fazer as travessias?
Há sempre receio de que se alterem as condições do mar, principalmente quando estamos a meio da travessia, porque seguir em frente ou voltar para trás é a mesma coisa. Há sempre receio. Mas acho que foram aventuras calculadas. Foi tudo calculado. Levei anos a treinar antes de ir para Santa Maria. Só fiz a primeira travessia aos 28 anos.

Quando ainda era criança, os seus pais não ficavam preocupados com as suas aventuras no mar?
A nossa infância, naqueles tempos, era mais livre e o facto de viver numa localidade pequena fazia com que não houvesse a preocupação que há hoje. O meu pai sabia que estava ou na praia ou no porto. Não tinha muito controlo. Sabia que eu estava ali. Naqueles tempos ir à praia era como um miúdo que vai hoje para a escola. Não havia controlo.

Entre o tempo em que começou a navegar, ainda criança, até à primeira travessia de caiaque a Santa Maria que outras viagens fez?
Durante esse tempo, e enquanto treinava, também andei de catamaram à vela, sem cabine. Também cheguei a ir a Santa Maria e a Lisboa num catamaram desportivo. Levámos cinco dias a chegar a Lisboa…

Uma viagem complicada para fazer de catamaram…
É um barco que só tem cerca de 50 centímetros de altura de borda. Não tem cabine e é muito estreito.

Como é que foi essa viagem?
A viagem foi preparada com muitos anos de antecedência. Fizemos várias travessias para Santa Maria. Esta ilha foi sempre o nosso palco de treino, uma referência ou um teste.

Foi acompanhado na travessia Ponta Delgada-Lisboa?
Fui com um colega meu velejador, o Mário Medeiros, mais conhecido por Sabão. Também fizemos juntos, num barco parecido com um catamaram, uma viagem para a Madeira. Também cheguei, sozinho, a fazer uma viagem a remos para a Terceira [num caiaque].

Que idade tinha quando foi de catamaram para Lisboa?
Tinha 35 anos. A viagem é sempre feita ao ar livre. À noite utilizávamos sacos de plástico, daqueles de por lixo, para nos resguardarmos. Um catamaram tem apenas cerca de 50 centímetros de altura. Estamos num banho constante e, à noite, para descansar enfiávamo-nos num saco.

Alguém sabia que iam chegar a Lisboa?
Sabiam porque houve muitos familiares que telefonaram para as capitanias para saber se já tinha chegado um veleiro, ainda que nunca tenham dito que tipo de veleiro era. A Capitania de Cascais achou estranho o facto de ter recebido muitos telefonemas e estavam à espera, ainda que não soubessem bem de quê. Até podia ser alguma coisa ilícita. Quando chegámos estava a polícia à nossa espera, de binóculos...

E quando viram o catamaram?
Quando viram disseram: "ah, são vocês! Venham aqui à capitania…". Nessa altura chegámos a pensar que podia dar confusão. Mas, depois de conseguirmos fazer a travessia já não interessava. O Capitão do Porto teve o bom senso de perdoar.

“O mar vai fazer sempre parte da minha vida”

Tem pena de não ter prosseguido numa vertente profissional?
Tenho pena de não ter feito um pouco mais de competição.
Até porque podia ter alcançado resultados interessantes…
Pois. Participei no Canadá, há cerca de onze anos, numa competição de mar em caiaque. A prova tinha uma extensão de 70 quilómetros. Fiquei em terceiro lugar. Participei nesta regata com 37 anos. Já vou fazer 48 e senti, naquela prova, que a idade já começa a pesar.
Por outro lado, em competição não sentia a mesma emoção das suas travessias solitárias...
Sim… De facto, a viagem em solitário é diferente da de competição. A competição é mais mediática. Por exemplo, quando cheguei a Santa Maria a primeira vez praticamente ninguém sabia. Só os meus amigos é que o sabiam.

Eles não tentavam impedi-lo?
Impedir não, mas alertavam e dramatizavam… Em especial meu irmão.

Se tivesse de escolher a viagem da sua vida…
Para mim aquela que teve mais importância, e se calhar maior risco, foi a primeira travessia de caiaque para Santa Maria. Teve um gosto especial. Houve uma outra viagem para Santa Maria em que encontrei, a meio canal, um amigo meu a bordo de uma lancha de pesca com turistas. Quando me viram, ficaram abismados. Iam pescar e ficaram quase uma hora ao pé de mim. Foi um bom encontro.

Vamos ver o João Garoupa numa última aventura?
Penso que vai ser difícil. Mas o mar vai fazer sempre parte da minha vida.

"Não me arrependo de nada"

Apesar dos sustos que apanhou, João Garoupa não se arrepende de ter feito as travessias que fez. Segundo diz, o açoriano tem, por natureza, espírito aventureiro.

Considera-se um lobo do mar?
Não me sinto um lobo do mar…

O que é que é preciso para fazer uma viagem destas?
Para já é preciso gostar e estar à vontade no mar. É também preciso espírito de sacrifício. É preciso ter resistência para quando as condições se alteram…

Também é preciso conhecer bem o mar…
Sim. É preciso conhecer bem o mar. Por isso é que tudo só foi possível porque comecei em criança a dar estes passos, primeiro para o ilhéu de Vila Franca do Campo e depois para Santa Maria. Foi um processo gradual…

Apanhou algum susto?
Por acaso apanhei um susto. Ia fazer uma travessia de caiaque da Madeira para as Canárias e a previsão meteorológica falhou. Estava a cerca de 60 milhas da Madeira e tive que pedir socorro. O caiaque partiu porque estava muito carregado.

Estava sozinho?
Estava acompanhado. O construtor e patrocinador apostou num barco leve e um pouco radical para navegarmos bem em bom mar. Mas a previsão do tempo falhou…

O que é que sentiu naquele momento?
Senti que se a comunicação falhasse nós não nos safávamos. Felizmente, conseguimos estabelecer contacto com terra.

Não foi este susto que o fez desistir?
Paguei uma multa avultada. Essas travessias são ilegais. Um caiaque e um catamaram desportivo, à luz da lei, não se podem afastar mais de três milhas da costa. Só dão autorização se for acompanhado, o que nem sempre é possível.

São aventuras arriscadas. Pode ser apanhado pelo mau tempo ou pela guarda costeira…
Exacto. Um catamaram tem cinco metros de comprimento e cerca de 150 quilos de peso. Custa, hoje em dia, cerca de 15 mil euros. Não podemos arriscar, porque podemos pagar multa e ainda apreendem o barco. É um desastre a todos os níveis.

Foi a Lisboa e para a Madeira de catamaram, há a tentativa de chegar às Canárias, foi a Santa Maria e à Terceira…
Fui para a Terceira a remos, sozinho…

Como é que se consegue chegar à Terceira a remos?
É preciso perceber de navegação e saber compensar porque um caiaque deriva muito. É preciso grande capacidade de orientação, ou seja, aquilo a que chamamos de navegação estimada.

Usou algum tipo de instrumento na travessia para a Terceira?
Fui para a Terceira só com uma bússola. Apanhei uma noite. Há outras pessoas que fazem este tipo de travessia, mas contam-se pelos dedos. Com base no que leio nas revistas da especialidade conta-se pelos dedos o número de pessoas que realmente faz este tipo de travessia. Não tenho conhecimento, a nível nacional, de pessoas que o façam em caiaque ou catamaram. A nível internacional há três ou quatro franceses que conseguiram, desde 1986, atravessar o oceano Atlântico.

Ainda faz travessias de caiaque ou catamaram?
A última que fiz foi com o Mário Medeiros, há cerca de cinco anos. Fomos de Santa Maria para a Terceira num catamaram. Foi a última. Nessa altura, chegámos à conclusão que já era altura de parar. Fizemos face a uma situação difícil de mar. Tivemos de pedir socorro e, às vezes, nem sempre é fácil comunicar com outras embarcações ou para terra.

Continua ligado ao mar?
Sim. Estou sempre ligado ao mar. Ando em veleiros, iates e de catamaram, mas de navegação costeira.

Olhando para trás, arrepende-se de alguma coisa?
Não me arrependo de nada. Para uma pessoa que gosta do mar, ficar no meio do oceano num barco deste tipo, sem ver nada, é de uma emoção tão grande que nos faz esquecer muitas coisas. Ficamos, não digo em transe, mas num estado de espírito que nos faz, muitas vezes, esquecer o perigo…

Dá-lhe uma sensação de liberdade?
Sim. O açoriano sempre teve espírito de aventura e vontade de sair das ilhas de qualquer forma. Lembro-me do "Barco e o Sonho" e de um outro homem, de Santa Maria, que se meteu no trem de aterragem do avião e, felizmente e por sorte, conseguiu chegar vivo à América. O açoriano sempre teve espírito de aventura.

Há menos jovens a praticar desportos náuticos

Acha que os jovens açorianos ainda têm o espírito de aventura de que falava?
Não. São outros tempos. A juventude tem muitas e novas formas de diversão. Dou-lhe como exemplo a internet. Também se nota que há menos pessoas a praticar desportos náuticos. No Clube Naval de Ponta Delgada percebemos isso…

Que mensagem pode deixar aos jovens?
A mensagem que deixo é que é muito bom praticar desporto de uma forma sadia. Agora, para o tipo de aventura que tive é necessário um longo processo de aprendizagem. Não posso dizer para não o fazerem, mas tem de se seguir um certo percurso…

Acha que as suas aventuras vão marcar uma geração?
Não sei. Para se conseguir fazer o que fiz é necessária uma grande entrega. É preciso, acima de tudo, gostar de estar no mar.


Perfil
João Augusto Medeiros, mais conhecido por João Garoupa, é natural de Vila Franca do Campo, em S. Miguel. Tem 47 anos e fez várias travessias marítimas de caiaque e catamaram, das quais se destacam a ligação Ponta Delgada/Lisboa e Ponta Delgada/Santa Maria. Aos 4 anos de idade emigrou com a família para o Canadá onde viveu cerca de dois anos. De regresso aos Açores, instala-se na vila da Lagoa. Posteriormente, muda-se para Ponta Delgada. Nesta altura, João Augusto Medeiros ingressa na escola de vela do Clube Naval de Ponta Delgada, entidade à qual ainda está ligado e onde dá apoio nas aulas de vela e canoagem. É reformado da EDA.

Entrevista publicada no jornal Expresso das Nove em 17 Outubro 2008 da autoria de ISABEL ALVES COELHO

2 comentários:

  1. O homem é doido! Ponto.
    Aquela viagem de Santa Maria para a Praia da Vitória aquando do I AçoresCat em 2005...

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  2. Bom blog sim senhor!

    Já está na lista do Candilhes!

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